segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

FGTS perde para a inflação pela 7.ª vez na década

Correção do Fundo de Garantia não garante reposição dos índices de preços e gera perda para seus cotistas

Em 2009, o rendimento dos depósitos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) será menor que a inflação pela sétima vez em dez anos, e o saldo que está no Fundo desde 2000 terminará o ano valendo 11% a menos que no início da década. A persistente perda do poder de compra desse dinheiro – que pertence ao trabalhador mas só pode ser sacado em ocasiões específicas – reforça a demanda por mudanças no FGTS.

Os pedidos mais frequentes são pela mudança na forma de correção dos depósitos e pela permissão para que os titulares apliquem ao menos parte do Fundo em investimentos mais rentáveis – como muitos fizeram ao comprar ações dos fundos de privatização da Petrobras, em 2000, e da Vale, em 2002. Até quinta-feira passada, esses papéis renderam 892% e 988%, respectivamente, frente aos 49% e 61% acumulados pelas contas do FGTS em iguais períodos.

As propostas de maior rentabilidade agradam aos trabalhadores. Mas, para o governo e alguns economistas, implementá-las significaria dinamitar uma importante fonte de recursos para habitação popular, saneamento e infraestrutura, além de tornar mais caras as prestações da casa própria. Nesse caso, o cotista ganharia de um lado, mas o mutuário perderia de outro.

No início do mês, três projetos de lei sobre o assunto foram tema de audiência pública na Comissão de Assuntos Eco­­nômicos (CAE) do Senado. Um deles propõe a mudança do “indexador” do FGTS, trocando a Taxa Referencial (TR) pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA). O uso do IPCA, que norteia as metas de inflação do Banco Central, automaticamente impediria que os saldos perdessem valor.

Correção incorreta

Se a lei que regulamenta o Fundo de Garantia (8.036/1990), fosse seguida à risca, o dinheiro depositado não estaria se desvalorizando. Ela determina que as contas vinculadas recebam correção monetária mais juros de 3% ao ano – o que garantiria aos poupadores um ganho real (acima da inflação) de 3%. Os juros têm sido pagos normalmente, mas há dez anos a correção é feita de modo incorreto. Isso porque a TR, taxa escolhida para atualizar os valores, é arbitrada pelo Banco Central, e desde 1999 se mantém abaixo da inflação. Com isso, os saldos do FGTS são apenas parcialmente atualizados.

Para definir a TR, o BC aplica um “redutor” sobre o ganho médio dos CDBs, títulos de renda fixa. Assim, é natural que a TR caia quando a Selic (taxa básica de juros) é reduzida – e, vale destacar, a Selic está no menor patamar da história. O problema é que o BC pode alterar tal redutor a qualquer momento e sem explicar seus critérios, o que faz a TR ser vista como um índice artificial.

“A TR não é um índice de correção monetária, é uma taxa manipulada conforme a conveniência. Como ela também é aplicada sobre a poupança, e com a queda da Selic o governo queria afastar investidores da caderneta, a TR foi ainda mais reduzida”, aponta Mário Alberto Avelino, presidente da ONG Instituto FGTS Fácil, que na audiência da CAE foi um dos porta-vozes do grupo que pede remuneração maior. Confiante, o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ) chegou a sugerir, na mesma ocasião, que o governo já comece a trabalhar com a premissa de que as mudanças serão aprovadas pelo Con­­gresso.

Nem tão simples

Autora de uma dissertação de mestrado sobre as propostas de mudança no Fundo, a economista Renata Moura Sena acha que não será tão fácil assim aprovar esses projetos. “Se pensarmos só pelo rendimento do trabalhador, de fato a situação é péssima. Mas não podemos esquecer que, se o FGTS elevar a remuneração dos cotistas, terá de aumentar a taxa de juros da habitação”, lembra Renata, que é professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

Anselmo Santos, professor de Economia do Trabalho da Unicamp, segue raciocínio semelhante. “Habitação a juro baixo interessa mais ao trabalhador do que uma remuneração um pouco melhor no FGTS. O Fundo se transforma em investimento produtivo, que gera emprego, renda e movimenta a construção civil”, argumenta. Mas ele admite: “Não garantir nem a inflação é complicado, uma vez que o FGTS é uma poupança compulsória”.

Fundo tem pior rendimento da história

Criada em 1991 pelo Plano Collor 2, um dos vários pacotes que tentaram derrotar a inflação, a Taxa Referencial (TR) tinha o objetivo de ser uma espécie de taxa básica de juros, uma referência para o sistema econômico. Desde então, é ela que corrige o FGTS, a poupança e a maioria das prestações do Sistema Financeiro da Habitação (SFH).

Até 1998, a TR havia perdido para a inflação apenas uma vez, em 1993. Mas logo o Banco Central passou a aplicar “redutores”, que descolaram a taxa da variação dos preços. Isso beneficiou mutuários da habitação, mas prejudicou poupadores e cotistas do Fundo de Garantia. Essa política ganhou força com a queda da Selic e a tentativa do governo de evitar a fuga de investimentos em títulos públicos em direção à poupança.

O resultado é que, em 2009, a TR terá a menor variação da história. Deve ficar em 0,71%, ao passo que o mercado prevê uma inflação acumulada próxima de 4,25%. Assim, o rendimento do FGTS ficará abaixo de 3,8% – o pior desde 1967, quando o Fundo foi criado –, reduzindo em 0,5% o poder de compra dos saldos dos trabalhadores. Por exemplo: quem tinha R$ 1,5 mil no Fundo em dezembro do ano passado e, com esse dinheiro, poderia comprar determinada geladeira, hoje tem pouco menos de R$ 1.557 na conta – e a mesma geladeira estará custando quase R$ 1.564, se tiver sido corrigida pelo IPCA.

A diferença pode parecer pequena para um cotista, mas permite uma economia bilionária ao governo. Nos últimos 12 meses, ele deixou de gastar R$ 9,7 bilhões ao não repassar integralmente a inflação às contas dos trabalhadores, segundo cálculo da ONG Instituto FGTS Fácil. Esse valor é suficiente para bancar, com sobras, a ampliação e modernização da refinaria de Araucária, um dos maiores investimentos da história do Paraná. Ou construir 257 mil casas populares, considerando-se o custo médio das moradias financiadas pelo Fundo em 2008 (R$ 37,8 mil).

Nos últimos sete anos, essa economia – que, do ponto de vista dos titulares das contas, representa perda – chega a R$ 55,7 bilhões. “O que temos é uma desvalorização, um confisco, para não usar outros termos menos cordiais”, esbraveja o presidente do FGTS Fácil, Mário Alberto Avelino, que move ações na Justiça pedindo a reposição desses valores às contas dos trabalhadores.

O professor de matemática financeira Antônio Carlos Béllio, que não crê em mudanças tão cedo na remuneração do Fundo, faz uma sugestão. “De momento, a melhor alternativa para o trabalhador é: se puder sacar seu saldo do FGTS, saque. Uma boa opção é usá-lo para abater o saldo devedor ou as prestações do Sistema Financeiro da Habitação.”

Mudanças reduzem recursos para políticas

O FGTS financiou 269 mil moradias em 2008, ao custo de R$ 10,2 bilhões. Também bancou R$ 1,3 bilhão em descontos na habitação para pessoas com renda familiar de até cinco salários mínimos, e destinou quase R$ 3,2 bilhões a obras de saneamento básico e infraestrutura urbana. No conjunto, essas obras geraram quase 530 mil empregos, segundo o Conselho Curador do Fundo. Para o governo e muitos empresários e economistas, se as pessoas puderem sacar seu saldo no FGTS para aplicá-lo em investimentos, o patrimônio do Fundo será corroído. Acabará, assim, a sustentação de políticas sociais nas áreas de habitação, infraestrutura urbana e saneamento. Também há quem aponte riscos para o próprio cotista, e para quem financia sua casa ou apartamento.

“Se for para flexibilizar, permitindo aplicar parte das contas vinculadas no mercado de ações, por exemplo, tem de ser pouco. Algo como 5% ou 10% de cada conta, não mais que isso. Há sempre o risco de as ações caírem, e aí o trabalhador perderia parte de um fundo que serve justamente para momentos de dificuldade, como o desemprego ou problemas de saúde”, avalia a economista Renata Moura Sena, professora da PUC-SP. “Enquanto o FGTS for usado para financiar a habitação, mexer na remuneração também será muito complicado. As prestações ficariam mais caras, prejudicando justamente a população de menor renda.”

A economista também destaca o papel desempenhado pelo FGTS durante crises econômicas. Ela lembra que, em 2009, R$ 13 bilhões do orçamento do Banco Nacional de Desen­­volvimento Econômico e Social (BNDES) saíram do FGTS – e que esses recursos ajudaram muitas empresas a driblar a secura de crédito no mercado financeiro.

Em sua dissertação de mestrado, apresentada no início do ano, Renata avaliou sete propostas de flexibilização do FGTS apresentadas por economistas de renome, entre eles os ex-presidentes do Banco Central Pérsio Arida e Gustavo Franco. E concluiu que nenhuma delas ofereceu soluções capazes de melhorar a rentabilidade do Fundo sem afetar a quantidade de recursos disponíveis ou o custo dos financiamentos. (FJ)


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*com informações publicadas na Gazeta do Povo

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