domingo, 26 de julho de 2009

De caráter familiar

Entre todas as grandes e pequenas falcatruas feitas pelo clã Sarney nesta antiga e próxima convivência com o poder central brasileiro, o que mais espanta, pelo caráter íntimo e familiar, são os diálogos gravados entre Fernando Sarney e a filha dele, Maria Beatriz, e entre o próprio Fernando e o pai ilustre, José Sarney.

É desconfortável ouvir a voz de uma quase menina como Maria Beatriz fazer a consulta sobre a possibilidade de empregar o namorado no Senado da República sem a menor alteração na voz, como se pedisse um favor qualquer, um emprego na empresa da família, ou na loja ou escritório de um amigo.

Não existe no tom da voz dela sequer uma preocupação de quem está fazendo algo condenável ou errado. É voz limpa de culpa, isenta de responsabilidade, livre de possível julgamento. Voz de quem sabe o que está falando ou pedindo, com um certo tom de sedução filial, aquele mesmo que se emprega para pedir um carro novo ou um vestido a mais, sabendo que, dentro das amplas possibilidades familiares, tudo pode ser atendido.

Na conversa entre o filho Fernando e o pai Sarney, para tratar do mesmo assunto, o emprego para o namorado de Maria Beatriz, tudo é mais direto, sem sombras de dúvida, tom de quem sabe os caminhos e tem a dimensão exata do poder exercido entre os "agaciéis" da vida, os altos funcionários públicos prontos a passar por cima de qualquer obstáculo político, ou público, e satisfazer a vontade dos chefes.

Ali também não se localiza um pingo sequer de preocupação com as exigências cidadãs e os protocolos do Senado Federal. Ao contrário, é um diálogo de dono, de quem está acostumado a se servir e ser servido, sem reservas.

Os diálogos entre os Sarney reproduzem, de cabo a rabo, todo o emaranhado e complexo relacionamento que as grandes famílias brasileiras, aquelas de longa tradição política, construíram com o estado brasileiro.

De poderosas a princípio, vão ampliando seus domínios e passam para as gerações futuras o sentido absoluto da propriedade. É a partir daí que tudo se confunde e o neto, ou a neta, já não terá a menor ideia de que existe uma diferença básica entre a fronteira da fazenda do avô e a porta do Parlamento, onde se deve exercer o ofício da obediência ao patrão maior, o Poder Público.

Quase sempre, a fazenda do avô é resultado da "grilagem" oficial e concedida. Vício da origem, que vai descambando para a certeza da impunidade e, finalmente, para a corrupção deslavada, a céu aberto.

É neste contexto que a velha e boa democracia, mesmo sendo o pior dos regimes, não tem substituto à altura, como disse de modo mais franco e direto, o inglês Winston Churchill. Não porque garanta a liberdade, nem porque tenha princípios éticos, mas simplesmente porque vem com o carimbo da alternância do poder.

Um país, um estado ou um município não pode depender de famílias mandatárias ou sobrenomes que valham por si só. Cada um de per si e Deus por todos. E irmãos, filhos, netos, sobrinhos, namorados de netas e afins de políticos em geral que usem seus talentos e capacidades para subir na vida e usufruir das próprias conquistas.

Nós, o povo brasileiro, já temos responsabilidades demais para arcar com mais essa, a de empregar e sustentar filhos dos outros, ora essa.

*publicado no bloga da Ruth Bolognese no Jornal "O Estado do Paraná"

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